Madrugada
Abro a porta com as poucas forças que me restam. A noite desgasta-me e o ar madrugador rejuvenesce-me. O relógio grita-me as horas vespertinas e os olhos reflectem o ar húmido, que ainda mal sente o sol. Vou pela estrada vazia, cheia de nada, em direcção ao carro cúmplice, acompanhante de tantas horas de viagem. Sinto-o frio, fustigado pelo orvalho. Continuo, vendo as escadas amarelas que vão dar à avenida principal. Sento-me a meio, no lugar que um dia foi nosso. Saco do maço de tabaco, e tiro um cigarro. Dou uma passa longa... sinto a nicotina a instalar-se no organismo. É um orgasmo prejudicial. Dou outra e penso em ti. Outra e penso em nós. Outra e começo a reparar no que me rodeia. A estrada está praticamente deserta. É raro passar um carro. Isto, na principal avenida da cidade, é bom de se ver. É a magia da madrugada. Acaba o primeiro cigarro. Reparo nas pombas que me rodeiam. Caminham com uma graciosidade invejável, mas com uma higiene deplorável. Sugerem-me outro, eu aceito. Acendo-o e penso no que perdemos, ou no que já se perdeu. Relembro momentos, sinto-os como se se passassem naquele preciso instante. Mas não se passam. E o que se passou não volta. Apago-o. Já estão duas beatas, no meio da cinza. Penso em fazer desenhos com elas, se continuar a fumar. E saco outro, só para não deixar o desenho incompleto. Imagino-me a escrever sobre aquele momento, mais tarde, quando tiver tempo. Curioso... tempo é coisa que não me falta, naquele momento. Mas estou, ironicamente, ocupado para tudo. Volto a nós. Nunca me cansei de pensar em nós. Acho que nunca me cansarei, para o bem ou para o mal. Grito revoltas, ponho tudo a nú. A avenida começa a agitar-se. Já há autocarros, e alguns carros de polícia e bombeiros. Pessoas passam já, a caminho dos seus empregos. Pergunto-me como é possível viver a acordar tão cedo. Quem não aprecia a noite não sabe o que é bom. E tu, tal como aquela agitação exponencial, sempre no horizonte. Vingo-me no quinto cigarro. Fumo-o com uma agressividade extrema, como se quisesse que aquilo acabasse a todo o custo. Ia ter de acabar. Quando chegar ao filtro, acaba. Isso é certo. Pergunto-me quando chegará o meu filtro. Questiono-me se não chegou, já. Faço um "A" com os 5 filtros abandonados, deixando naquelas escadas uma pista para o maior bem do mundo. Levanto-me, a pensar nisso. O estado de espírito está ao nível daquela avenida, bem baixo. No fim, uma única conclusão, que está, por coincidência, escrita em todo o lado. Fumar faz mal à saúde. E amar, não fará?
2 Comments:
O teu melhor texto até hoje, deixa que te diga.
Fumo um cigarro contigo
o meu primeiro contacto com o teu 'segredo' não poderia ter sido melhor.
lê-se e relê-se e o gostozinho que fica na boca é sempre o mesmo. sabe me bem.
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